Por onde passa a pediatra Elvira Souza leva sua fé, vontade de servir ao próximo e muitas histórias para contar. Há quase 21 anos a médica participa como voluntária da Missão Barra, projeto social do Hospital São Rafael, que tem como objetivo levar atendimento médico à população mais carentes do município de mesmo nome, localizado a cerca de 800 quilômetros de Salvador. Seis vezes por ano ela deixa sua família e o seu trabalho na capital baiana, na creche Amor ao Próximo e na Faculdade de Ciência e Tecnologia (FTC), para cuidar da saúde de pessoas que mal têm acesso a energia elétrica.

A viagem da capital baiana até Barra, que é feita de ônibus e dura 12 horas, não a intimida. Muito pelo contrário. “É lá que recarrego as minhas energias”, garante Elvira. E trabalho não falta. De acordo com ela, a cada missão, que conta com atendimento clínico, pediátrico e de enfermagem, são mais de mil pessoas assistidas. Mas o resultado compensa. “O sorriso das crianças e jovens que espreitam nas janelas tentando ‘assistir’ às consultas como se participassem de um grande evento teatral, a sucessão de pessoas curadas ou aliviadas de seus males. Desafios. Vitórias. Choros e sorrisos. A certeza de estar fazendo a minha parte”, resume a pediatra.

Entre as inúmeras histórias de Barra para contar, Elvira, de 58 anos, lembra-se de uma que, apesar de ter acontecido há 17 anos, lhe marcou e continua viva em sua memória como se tivesse ocorrido ontem. Na difícil estrada de areia, que liga o centro da cidade até um dos povoados, ela conta que a equipe foi surpreendida com o apelo de um pai, que pedia ajuda para salvar a vida de um dos seus 12 filhos: um bebê de apenas 11 meses. “Ele pediu para vermos o seu filho que estava com diarreia e vômitos há três dias. Orientamos de ele levar a criança até o posto onde atendemos mais próximo, mas ele disse que o menino não aguentaria chegar até lá”, lembra a médica.

De acordo com ela, o procedimento seria encaminhar a criança até um dos oito postos de saúde do projeto, mas, diante do apelo de um pai, o protocolo foi quebrado. “Apertamos no carro e o levamos conosco até a sua casa, onde estava o bebê. Chegando lá encontrei uma criança completamente desnutrida, muito suja e com dificuldade até para respirar”. Sem condição de pegar a veia periférica, Elvira conta que a opção foi improvisar com uma agulha mais grossa, de injeção (40/12), e fazer um acesso intra-ósseo na perna do bebê para colocá-lo no soro. “Tudo isso foi feito no capô do Jeep e graças a Deus deu certo”, ressalta.

Mesmo tendo apresentado melhoras, o bebê ainda inspirava cuidados. Sem Unidade de Terapia Intensiva, e com mais pessoas esperando atendimento médico, a solução encontrada pela pediatra foi levar a criança com a equipe até o posto de saúde improvisado mais próximo. “Pedi à mãe que pegasse roupa para ela e para o bebê que eles iriam conosco no carro. Foi quando ela me disse que nunca tinha saído dali”, recorda Elvira, emocionada. Após convencer a família da necessidade de acompanhamento, ela precisou improvisar mais uma vez: “Amarrei o soro em uma trave do carro e, com esparadrapo, coloquei o estetoscópio no tórax do bebê para monitorá-lo”, lembra.

Todo o esforço da profissional não foi em vão. Além de salvar a vida da criança, que hoje está com 18 anos e trabalha no setor da construção civil em São Paulo, ela ganhou o título de “segunda mãe”. “No dia seguinte ao atendimento a mãe me chamou para eu batizar seu filho. Eu aceitei e o batizado foi feito lá mesmo, por Frei Benjamin”, recorda Elvira, explicando que o frade italiano, um dos que ajudou na implementação do Hospital São Rafael Brasil, foi o responsável pelo projeto em Barra, no oeste baiano. E engana-se quem pensa que a relação madrinha-afilhado encerrara ali. “Sempre nos falamos. Esses dias ele me ligou para contar que será transferido para Minas Gerais”, conta a pediatra, orgulhosa.

Projeto – O trabalho começou quando Frei Benjamin, a pedido do Bispo de Barra, Dom Itamar Viana, entrou no combate para vencer a hanseníase na região. Hoje, o atendimento é realizado por equipe formada por cerca de dez profissionais, entre médicos, residentes, internos, enfermeiros e técnicos, que juntos visitam a região seis vezes ao ano. Cada missão tem duração de seis dias e atende a quatro comunidades. O Hospital São Rafael banca as despesas, incluindo as passagens dos voluntários, medicamentos, material para atendimento e alimentação, entre outros. Durante esses quase 21 anos de projeto, estima-se que mais de 64 mil pessoas já foram atendidas nas mais de 126 expedições realizadas até hoje.

Dra. Elvira Souza, que já perdeu as contas de quantas vezes utilizou a luz do farol do carro para iluminar o local de atendimento, continua sonhando alto. “Espero pelo dia em que todas as pessoas tenham acesso ao serviço de saúde, com atendimento integral e eficiente, em tempo hábil, desde a saúde básica até o atendimento de alta complexidade. Os profissionais de saúde serão remunerados com justiça e terão condições de trabalho adequadas”, afirma ela, complementando: “Acredito que o mote da campanha do Dia do Médico este ano [médicos que fazem de tudo com quase nada] seja uma oportunidade de lembrar que sempre podemos fazer um pouco mais”.

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