O combate efetivo à dependência de drogas necessita de vontade política e serviços de atendimento com estrutura adequada.
Ultimamente a mídia tem dado atenção ao fenômeno do crack, com matérias diárias nos diferentes órgãos de imprensa. Ao leigo pode parecer sensacionalismo, ou mesmo uma mensagem de cunho catastrófico, mas o contato com essa população mostra que o problema é de grande intensidade, constante, e que não tem poupado nenhum segmento da sociedade. Entretanto, algumas informações são discordantes, devido principalmente aos diferentes interesses envolvidos na situação.
Senão, vejamos: os órgãos governamentais tentam diminuir a sua importância, escondendo-se em discussões estéreis e que não têm outra serventia a não ser o desvio do foco do problema. Assim, afirmam que o país apresenta um contingente de dependentes estimado em 2% da população, enquanto que a Organização Mundial de Saúde faz a estimativa em 3%. Em números absolutos, isso significa uma grande diferença no número de pessoas que necessitam de algum tipo de cuidado, que o estado não tem conseguido atender ao longo das últimas décadas.
Outro fator importante é a discussão também entre as diferentes profissões da saúde que advogam posturas diversas em relação ao problema, como a crítica contundente realizada pelo Conselho Federal de Psicologia às comunidades terapêuticas.
Vemos ainda o descompasso entre os diferentes poderes constitucionais do nosso país, como as divergências de opiniões acerca das figuras de “internação involuntária” e “internação compulsória”, ambas previstas na Lei 10.216/2001, ou ainda quando o governo federal investe em tratamento privilegiando prioritariamente as comunidades terapêuticas.
Um fator que contribui para a não assistência aos dependentes é dado pela percepção social de que o dependente químico não é doente, e sim portador de algum defeito de caráter, sendo, portanto, um “sem-vergonha”, que como tal deve ser tratado.
Assim, no Brasil, a tradição tem sido de descaso, negligência e agressividade no tratamento dos dependentes químicos. Com frequência, o problema tem sido tratado como caso de polícia, acionada para “dar um corretivo” ou “uma lição” nesses “maconheiros” ou “desavergonhados”.
Depois de muita relutância, houve o reconhecimento de que a dependência é uma doença, e que é maior que a vontade da pessoa em parar com o uso, sendo que algumas pessoas procuram ajuda voluntariamente.
Mas como tratar essas pessoas, se, em nosso país, mesmo pacientes com outras doenças, que nunca tiveram a interpretação moral ou a imagem de ser um vício, não conseguem ser atendidas, não conseguem ter acesso aos serviços de saúde? Será que a obrigação pelas autoridades judiciais e policiais seria suficiente para a solução de um problema que os setores sanitários não conseguiram aceitar e nem resolver?
Existe ainda a crença de que para uma pessoa se livrar da dependência basta ter força de vontade, ou “vergonha na cara” para que deixe de fazer uso das drogas.
Mas a dependência é uma doença, e uma de suas características é que, o uso repetido da substância (álcool, maconha, cocaína, pasta base, crack etc) leva a mudanças na forma do organismo trabalhar, provocando alterações da conduta, do comportamento. É uma doença mental, e como tal deve ser tratada.
No Brasil, com alguma frequência, verifica-se o descompasso entre a teoria e a prática, e isto é mais facilmente percebido no acesso aos serviços de saúde.
Apesar de estar previsto na Constituição Federal, no Artigo 196, que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, há a realidade presente de que isto não acontece. Não pela falta da lei e nem pela falta de vontade do povo em cumprir a lei, mas sim porque não se tem recursos físicos, materiais ou humanos.
É só prestar atenção nos noticiários nacionais e regionais sobre o assunto. A nossa realidade é a de dormir em filas para conseguir senhas para o atendimento, é de profissionais mal remunerados, desvalorizados e, com frequência, considerados culpados quando procuram apontar as falhas do sistema.
Não é através da mudança da lei que ocorrerá a mudança de comportamento da população, principalmente quando se trata de doenças mentais, distúrbios, transtornos, enfermidades, sofrimento psíquico ou como possa ser chamado.
O que pode auxiliar na mudança de comportamento da população é se, de fato, e não mera retórica, ocorrer a criação de condições para que os serviços necessários existam e funcionem. E para isso seria imprescindível que os diferentes poderes tivessem coerência entre si.
Atualmente há o consenso de que o tratamento de uma pessoa com dependência química apresenta algumas etapas como:
Desintoxicação – Trata-se de uma série de medidas terapêuticas, geralmente em regime de internação, para evitar que, com a suspensão do uso das drogas, a pessoa apresente agitação psicomotora, agressividade, náuseas, vômitos, confusão mental e, eventualmente, convulsão e morte. É a primeira etapa do tratamento e não há nenhuma garantia de que, quando a pessoa sair, não vá fazer uso imediato de drogas. É o primeiro passo para que a pessoa, se estiver com disposição para o tratamento, tenha melhores condições para tal.
Desabituação – É o segundo objetivo a ser conquistado. O elemento humano tem a tendência de criar hábitos como uma ação repetitiva e que, depois de tantas repetições, termina sendo automática. A desabituação é a etapa do tratamento em que se procura fazer com que a pessoas se deem conta destas repetições e passem a ter estratégias, formas de controle, objetivando uma persistência na ausência do uso. Talvez seja a etapa mais difícil. Um exemplo: as pessoas que escrevem com a mão direita, se quiserem treinar com a mão esquerda rapidamente se cansam e se irritam. Entretanto, se ocorrer uma fratura da mão direita, é capaz de que em um mês a pessoa possa estar escrevendo o seu nome com a esquerda. Mas, nessa adaptação, seguramente houve uma grande dose de cansaço e de irritação. Ora, se uma adaptação de movimentos já se mostra tão difícil, como é que fica a mudança de emoções, sentimentos e pensamentos pelos quais os dependentes se pautam? Portanto, a desabituação é muito mais difícil que a própria desintoxicação.
Manutenção – Uma vez conseguida a desabituação, se faz necessária a criação de estratégias para a manutenção das conquistas. Pode ser de tal forma que haja a valorização das conquistas, a valorização da própria imagem e a busca de elementos que permitam a continuidade de satisfações e seguranças pessoais.
Prevenção de recaídas – Como fazer com que a pessoa não fique exposta a situações de risco? Deve-se conhecer as circunstâncias, os locais, as pessoas com quem era feito o uso das substâncias, e traçar estratégias para a evitação de início e de confrontamento posterior.
Verifica-se, então, que o tratamento de uma pessoa com dependência química não necessita “apenas da vontade pessoal”. Torna-se necessário que haja uma estrutura mínima, um consenso de como isto deva ser feito, e, principalmente, que haja disponibilidade dos serviços para a sua realização.
E os serviços necessários são muitos, e especializados. Há a necessidade de se ter os estabelecimentos para a desintoxicação, pois quando a pessoa tenta parar de usar a substância, o corpo estranha e aparecem sintomas como tremedeiras, suores, náuseas, vômitos, alucinações, delírios, podendo haver até infecções e convulsões, com risco para a vida. Uma pessoa alcoolista, por exemplo, em síndrome de abstinência e em seu grau de maior gravidade, que é o Delirium tremens, se não for tratada de forma adequada, estará exposta a uma taxa de óbito de até 25%, ou seja de cada quatro pacientes, um tem risco de morte.
Há a falta de serviços especializados públicos, mesmo nos maiores estados da federação. E nos estados menores, por vezes, não se verifica nenhum serviço público, ficando esse espaço aberto para as iniciativas da população, de grupos com boa vontade, mas sem preparação ou qualificação técnica, sendo que só recentemente há uma preocupação estatal de se fazer alguma orientação para estas iniciativas não governamentais.
Um plano razoável de tratamento, subsidiado por políticas públicas, deveria prever as seguintes instâncias: unidades de desintoxicação, serviços ambulatoriais para a continuidade do tratamento, estabelecimentos de longa permanência para os pacientes com dependência grave e que já apresentam perdas nas funções da inteligência e da afetividade, necessitando de programas de reabilitação. Além disso, é necessário assegurar o tratamento das comorbidades (outras doenças que estão presentes ao mesmo tempo).
Contrariando o pensamento popular, não basta ter o conhecimento, a informação para resolver os problemas. Não basta a pessoa saber quais os prejuízos que a dependência traz, como também não é suficiente a vontade da pessoa. As manifestações do desejo ou as manifestações de sofrimento que a falta da substância causa, costumeiramente são de intensidade maior do que a possibilidade da pessoa resistir a esse desejo.
Outra dificuldade é que não basta a desintoxicação. Ela é apenas a primeira fase do tratamento e deve servir como fator de facilitação para as outras etapas. Mas as outras etapas também não estão disponíveis para a população. Seria indispensável a existência de serviços de atenção ininterrupta, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 30 dias por mês, 365 por ano.
Quem trabalha nesta área sabe que vários fatores podem precipitar as recaídas. Os fatores mais conhecidos são as situações conflitivas, as situações geradoras de tensão, a falta de atividades de lazer, a falta de opções de atividades culturais, entre outros. Se, numa situação de tensão, de conflito, uma pessoa em abstinência não tiver um serviço à sua disposição, o risco de recaída é maior. E há o consenso de que as recaídas têm maior intensidade, trazendo prejuízos maiores.
Assim, não basta apenas a “desativação” das cracolândias, sem haver estruturas de retaguarda, organizadas de tal forma que o dependente, ao ser retirado, possa receber tratamento adequado, que lhe dê condições de manter o afastamento destas substâncias.
É imperiosa a criação de serviços com capacidade de atendimento à população necessitada. Mas, como isto implica uma mudança de atitude, de realização política, de esforços convergentes, corremos mais uma vez o risco de ver as pessoas serem retiradas das ruas, encaminhadas para algum “abrigo improvisado” e, logo em seguida voltarem para o uso das drogas. E o Estado considerar-se-á cumpridor de sua obrigação para com a população.